Ao longo de séculos, inventos, ideias e dispositivos foram criados e sedimentados até formarem os princípios fundadores do cinema: projetar em uma tela, fotografias animadas com a ilusão do movimento. Esse feito foi de tal modo consagrado quando do lançamento do cinematógrafo Lumière em 1895, que mais tarde foi atribuído à qualquer imagem projetiva e animada o nome genérico de “cinema”. Poderiam ser outros nomes, pois naquele momento havia diferentes formas de projetar imagens luminosas e animadas, algumas delas, centenárias. As câmeras obscuras e os milenares teatro de sombra, são exemplos disso e o historiador francês Laurent Mannoni vai mais além quando afirma que “o sonho de projetar numa parede ou numa tela imagens luminosas e animadas é, na história da humanidade, quase tão antigo quanto ao sonho de voar”.
O cinema, tal qual conhecemos, foi uma mídia técnica que se constituiu através de um processo histórico que o curso Pré-cinema pretende apresentar. As aulas são divididas em 7 mídias que basilaram a técnica cinematográfica: luz e sombra, câmera obscura, óptica, lanterna mágica, panorama, fotografia e cinética que são tratadas independente seguindo uma orientação histórica.
Aula 01 – Luz e Sombra
A luz é o princípio do cinema. A sombra, a primeira imagem. No encontro entre elas surge a imagem projetada em movimento. E as sombras jamais saíram de cena desde sua estreia há milênios atrás quando surgiu na Ásia o teatro de sombra, que se tornou a primeira mídia visual, luminosa e projetiva da história. Os efeitos da luz e seu negativo vem sendo explorado até os dias de hoje por incontáveis artistas, seu poder de enganar, despistar e assombrar foi, e tem sido, amplamente explorada devido a seu alto efeito dramático.
Aula 02 – Camera Obscura e Objetos Ópticos.
Quando a luz cruza um orifício, seus raios se concentram para passar pelo buraco. E a medida que passam, se expandem novamente. Esse é o fenômeno natural que inspirou a ideia de se criar uma caixa óptica que pudesse aprisionar a luz e guardá-la em seu interior. O objeto capaz desse feito foi câmera obscura, cuja primeira notação na história remete ao século XIII. As possibilidades de manipular a luz foram significativamente ampliadas quando na história foram desenvolvidos ou aprimorados objetos ópticos como os espelhos, lentes e vidros, que propiciaram recursos “infinitos” para imagem. Reflexão, distorção, refração e despiste são produtos diretos da óptica que foram amplamente empregados em instrumentos ao longo da história do pré-cinema.
Aula 03 – Lanterna Mágica
O projetor de imagens foi inventado em 1659 e depois batizado com o nome de lanterna mágica. Placas de vidro translúcido pintadas à mão eram projetadas em uma superfície por meio de uma fonte luminosa e um conjunto de lentes. Criada em um contexto de ciência de ponta, seu uso foi popularizado e algumas décadas mais tarde, em pleno Século das Luzes, exibidores itinerantes viajavam entre vilas e cidades vendendo imagens luminosas. Também conhecida como lanterna do medo, certos rituais espíritas projetaram fantasmas que flutuavam em tecidos ou fumaça quando eventos do gênero passaram a se chamar de fantasmagoria. Além de espantar, a lanterna mágica podia explicar, entreter e se integrar em uma palestra ou em uma aula na universidade. Durante o século XIX as lanternas mágicas passaram por intenso processo de aprimoramentos tecnológicos e se um objeto de consumo explorado por uma poderosa indústria multinacional. Quando o cinematógrafo foi lançado, em 1895, uma lanterna mágica do fabricante Molteni foi utilizada para projetar sobre uma tela os primeiros filmes animados da história.
Aula 04 – Panoramas
O Panorama é um emblemático caso de mídia morta cuja a memória vem sendo resgatada pela história do Pré-cinema. O panorama é uma forma de entretenimento popular no século XIX que oferecia ao público a experiência de hiper-realidade através de pinturas gigantescas. Montada em um edifício construído especialmente para ela, a tela se padronizou com 150m de cumprimento por 10m de altura. Suas pontas se juntavam formando um enorme círculo mantendo a imagem para dentro, local onde o observador se posicionava para contemplar a totalidade da pintura em 360º. As vistas ficavam “em cartaz” por meses atraindo multidões de diversas classes socais, seduzidos pela mesma experiência imersiva o que deu aos panoramas o feito de ser a primeira mídia de massa da história.
Aula 05 – Objetos cinéticos
Para a história do pré-cinema o conceito de cinético não se restringe a ideia de imagem em movimento, mas de imagem com a ilusão de movimento. Por essa razão, alguns estudiosos celebram o ano de 1832 como o início do cinema, data que foi inventado o desenho animado sobre um disco de cartão contendo 12 desenhos fixas e sucessivos que ao serem reproduzidos em certa velocidade de troca produziam a ilusão de movimento. Os objetos cinéticos como zootrópio, estroboscópio e flickbook se popularizaram e ganharam o nome de “brinquedos filosóficos”. Assim pequenas animações agraciaram lares burgueses no século XIX da mesma maneira que hoje os giffs ganham as telas dos celulares. Quando vistas separadamente, as micronarrativas circulares dos objetos cinéticos históricos apresentam um rico repertório estético e expressivo da imagem em movimento.
Aula 06 – Fotografia
Lançada comercialmente em 1839, a fotografia esperou quase 50 anos para emprestar seus recursos ao cinema. O fato é bastante compreensível porque um filme dos primórdios era composto por centenas de fotografias sequenciadas sobre uma tira – o que por si só é um desafio tecnológico. No início morosa e unitária a fotografia teve que se desenvolver drasticamente ao longo do século XIX para se converter em instantânea e sequenciada.
Desde seu princípio, a fotografia se tornou um precioso instrumento para a captação do visível, e dada a amplitude desse desafio não foram poupados esforços de superação para poder registrar. Nada escapou ao olhar das lentes fotográficas como também nada escaparia das câmeras de cinema. Vistas de grandes cidades, o mundo exótico, experimentos científicos, registro de festas ou desastres foram fotografados e depois filmados, refazendo um itinerário para atender os anseios de um mundo que passava a usufruir recurso da anotação visual.
As pesquisas sobre a história da fotografia já versaram profundamente sobre o conceito da imagem fotográfica como recorte da realidade. Ou não. Como documento ou criação. Essa questão é particularmente interessante para o pensamento pré-cinematográfico quando são evidenciados, em certos trabalhos, os processos de manipulação da imagem. Com a invenção da fotografia se consolidou o conceito de imagem técnica que conhecemos hoje. Essa matriz tecnológica inspirou os pioneiros da fotografia e tirar proveito dos procedimentos físicos e químicos na busca de resultados desejados. Os processos de retoques na imagem como a colorização, ampliação, recortes, colagem, sobreposição surgiram concomitantemente com a fotografia e foram amplamente explorados pelos fotógrafos do século XIX. Por essa razão, os filmes dos primórdios são tão ricos em trucagens ou procedimentos de pós-produção, pois legaram de experientes profissionais da fotografia os recursos que seriam chamados de efeitos especiais.
Raimo Benedetti
É videoartista, montador de filmes cinematográficos e pesquisador independente. Cursou Cinema e Vídeo na Universidade de São Paulo nos anos 1990. É professor do curso Pré-cinema que criou há cerca de 5 anos. É autor do livro “Entre Pássaros e Cavalos: Muybridge, Marey e o Pré-cinema” lançado em 2018 pela Editora do SESI São Paulo. Criou, em 2007 o espetáculo de live cinema Cinema das Atrações baseado em seus estudos sobre os primórdios do cinema. Foi bolsista do centro de arte contemporêna Arteleku, Espanha em 2003, contemplado pelo projeto Rumos Audiovisual Itaú Cultural em 2007, sendo convidado ser membro do juri de seleção do mesmo prêmio em sua edição seguinte . Como videoartisa é representado pela Duplo Galeria de São Paulo, e participou de exposições e mostras como FILE, ON-OFF e Visualismo. Como professor passou por instituições artísticas e acadêmicas no Brasil e exterior como Universidade de São Paulo, Fundació La Caixa (Espanha), Museu de Arte Moderna de São Paulo, Instituto Tomie Ohtake, Universidade Federeal de São Carlos, Museu de Imagem e Som de São Paulo entre outras.
Pré-cinema?
Diante do esforço de apresentar a amplitude da história do pré-cinema, é preciso no entanto, mencionar o fato que o termo “pré-cinema” não é uma unanimidade. Mesmo diante de sua emancipação, o termo segue sendo contraditório e se entende perfeitamente suas razões. O emprego do prefixo “pré” neste caso induz a uma ideia de vínculo anterior, como se a ocorrência predecessora de certas práticas estivesse prometida para a futura invenção do cinema. As tecnologias que se adensaram para a constituição do cinematógrafo, têm uma história autônoma, com suas próprias balizas e desenvolvimentos e claro não foram criadas prevendo que algum dia chegaria o cinema . Assim o termo pré-cinema centraliza demasiadamente o “cinema” dentro de uma história que na verdade é muito maior do que ele, a história das mídias ópticas, como batizou o historiador alemão Friedrich Kittler, a qual o cinema é um importante integrante, mas não o central.
A Grande Arte da Luz e Sombra – Laurent Mannoni
Arte Virtual – Oliver Grau
Mídias Ópticas – Friedrich Kittler
Arqueologia da Mídia – Siegrfried Zielinski
A Fotografia , entre documento e arte contemporânea – André Rouillé
Cultura Popular na Idade Moderna, Peter Burke
Técnicas do Observador – Jonathan Crary
Pré-cinemas & pós-cinemas – Arlindo Machado
Temas tratados em aula: -No tempo das cavernas Fazia o homem paleolítico cinema underground? Teatro de Sombra Fogos de artifício – Câmera Obscura À luz do dia (Giovanni Della Porta) – Objetos Óticos O encanto da profundidade de campo – Lanterna Mágica A magia luminosa Royal Polytechnic – Panorama O surgimento do espetáculo de massa (Robert Baker) – Fotografia Curto período para a rápida exposição (Daguerre) – Objetos Cinéticos A persistência da imagem na retina (Joseph Plateau) – Fantasmagoria No convento dos Capuchinhos (Robertson) – Teatro Ótico As pantomimas ilustradas (Émile Reuynaud) – Cronofotografia O vôo da pomba (Marey) Cavalos a galope (Muybridge)